DE S. PETERSBURGO A MOSCOVO
Se alguém tiver a intenção de um dia visitar a Rússia recomendo que o faça através de um cruzeiro fluvial que ligue S. Petersburgo a Moscovo. São mil e trezentos quilómetros de navegação que permitem, numa curta viagem de 10 dias, ter uma ideia geral do povo russo, da sua mentalidade, da sua história, da sua cultura, do seu nível de vida. Visitam-se pequenas, médias e grandes cidades, atravessam-se rios, lagos e canais, escalam-se eclusas e tem-se acesso a ilhas exóticas…
S. Petersburgo, Rio Neva, Lago Lagoda, Rio Svir, Mandrogy, Lago Onega, Ilhas de Valaam e de Kizhi, Canal de Kovzha, Lago Beloye, Goritzi, Rio Sheksna, Reservatório de Rybinsk, Yaroslavl, Rio Volga, Uglich, Canal de Moscovo e, finalmente, Moscovo, eis no que, em síntese, consiste este famoso cruzeiro, cujo título é, com rara felicidade, inspirado nas obras literárias de Radishhchev e Alexander Pushkin, respectivamente Journey from St Petersburg to Moscow e Journey from Moscow to St Petersburg, muito familiares também do próprio povo russo que, tendo condições económicas favoráveis, não deixa, ele próprio, de efectuar este deslumbrante cruzeiro.
Esta viagem permitiu-me saber que este extenso País é muito diferente nos níveis de desenvolvimento do seu povo. Moscovo imperial ou S. Petersburgo cosmopolita e cultural nada têm a ver com as outras cidades desta imensa Nação-Continente. Muito menos se assemelham às populações das vilas e aglomerados rurais em que a miséria económica e a degradação social se constituem na situação corrente de um povo que, sendo afável, manifesta ser simultaneamente sofredor, desiludido, resignado e sem esperança de uma vida melhor.
Há, por todos os lados, sinais claros do que foi a sua longa história, quase sempre sustentada por lutas de Poder Político e de uma nefasta influência do Poder Eclesiástico local. Estes dois poderes pouco quiseram saber de um povo que, escravizando na Terra, preparavam para um Céu que havia de vir. Poder religioso e poder político, lá como cá, sempre de braço dado, na preservação das suas próprias honrarias, mas sempre indiferente às condições de degradação económica do povo que governavam. O poder político dos Czares e a força religiosa dos Metropolitas, numa primeira fase milenar, e dos Comunistas, em todo o século vinte, foram as notas que mais marcaram uma Nação cujo povo se habituou a suportar sem capacidade de contestação. O povo russo é hoje, na sua raiz mais intrínseca, um povo manso, porque manso o fizeram os tiranetes da sua história. Depois de, na cidade de YAROSLAVL, me ter sido dito por um guia local que 50000 camponeses trabalhavam gratuitamente para 150 monges de uma riquíssima congregação religiosa, que forma mais concludente há para se descrever o que por lá se passou? Tudo em nome dos Czares na Terra e de Deus no Céu!!!
Esta forma de organização do povo russo deixou, pois, marcas históricas de grande importância, negativas e positivas. Como marcas negativas, o já aflorado poder tirano de czares e de dirigentes religiosos e, no último século, do poder político de comunistas sanguinários; Ivan (o Terrível), Pedro I (o Grande), Catarina II (a Grande) e, já nos tempos modernos, Estaline, são disso um arrepiante testemunho. Como sinais positivos ninguém pode esquecer, para além da literatura, ciência, música, teatro, vias fluviais e grandes obras de engenharia, o que pelo País abunda, de períodos mais longínquos, em matéria de igrejas, catedrais, monumentos, museus e palácios. As cúpulas douradas das catedrais de S. Petersburgo e Moscovo emprestam a estas cidades uma beleza única, dificilmente igualável no mundo. Neste contexto é obrigatório, em S. Petersburgo, visitar-se os palácios de Pedro o Grande (localizado em Peterhoff e residência de verão do czar, é tido como o Palácio de Versalhes russo) e de Catarina a Grande (em Pushkin), bem como o Museu Hermitage (uma espécie de Louvre de Paris e antigo Palácio de Inverno de Catarina II), considerado como o maior do mundo em termos de conteúdo e de números de obras expostas; como é obrigatório em Moscovo visitar-se o Kremlin, o Museu de Armeria, a Praça Vermelha, a Igreja de Cristo Redentor, a Catedral de S. Basílio e o Metro de Moscovo (que obra de arte este espantoso museu subterrâneo!!!).
Dizia-me um dos guias russos que durante o consulado soviético a religião deveria ser banida da sociedade russa. Não era mais necessária; a única “religião” oficialmente aceite deveria ser o próprio ideal comunista, a implantar em todos os territórios da então União Soviética mas a expandir igualmente por todo o mundo e por todos os povos, nem que fosse pela força das armas. Não nos fará este pensamento recordar algo de idêntico com as religiões que provieram de Cristo? O que foram as nove Cruzadas da Idade Média e o que é a Jihad islâmica dos tempos que correm?
Hoje por hoje não sou nada dado a grandes manifestações de natureza religiosa; mas na Praça Vermelha, lá que senti como que um deslumbramento de natureza mística que não consegui explicar, lá isso senti…Hei-de lá voltar.
2 comentários:
Claro que não tenho nenhuma das suas capacidades de escritor e de resumo de um País e da sua história. Se eu tivesse essa capacidade escrevia exactamente o que escreveu, pois concordo totalmente. Mas em primeiro nos anos 80 nehum de nós esperaria visitar uma Russia altamente católica, levando muito a sério um Cristianismo ortodoxo que lhes foi teorica e publicamente proibido durante muitos anos, assim como aconteceu ao judeismo em Portugal no passado. Não sei porquê mas ninguém se esquece. A segunda questão que aflora é a de que teria lá que haver uma revolução contra o imperialismo e a ditadura dos Cazres, que se fornava, no sec XX e muito depois da revolução Francesa obrigatória e inevitável, e o que a maior parte não esperava é que essa revolução fosse seguida de uma ditadura mais feroz e mais implacável (mas temos termos de comparação?) e absolutamente programada. Mas assistimos hoje a uma abertura total para a Religião, para o Capitalismo (perfeitamente selvagem) que não sabemos a que vai levar. Esboça-se uma nova ditadura mas ...o futuro é sempre dificil de adivinhar. De qualquer modo as visitas ao passado e ao presente da Russia são absolutamente obrigatóprias para quem gosta de saber o passado e o presente dos que "comiam criancinhas ao pequeno almoço". Vamos continuar durante um dos nossos próximos alomoços ou...jantares, conforme queiram. Esta´feito o meu convite pessoal.
Um abraço de Benvindo Justiça
Estive de novo a ler esta descrição da viagem, que não duvido tenha sido fascinante. Embora hoje já nos cheguem muitas notícias e imagens daquele País, parece que só com uma visita poderemos ter uma ideia um pouco mais aproximada daquela realidade. Com isto despertou-me um interesse que eu, sinceramente, não tinha...
J.Matos
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